4 de nov. de 2011

Entrevista: Elifas Andreato, artista da música popular brasileira

Por Eliene Santana e Rafael Biazão

Artista da Música Popular Brasileira, Elifas Andreato, fala sobre o processo de criação da arte em capa de discos e a mensagem que sempre buscou passar em suas obras. Andreato desfaz o pensamento de que o desenhista apenas reproduz a ideia de outra pessoa, e afirma que deve-se buscar expressar sentimentos e ideais através da arte. Acredita que a arte na era digital limita a obra e afirma que continua criando suas capas como antigamente, utilizando apenas lápis e prancheta. Autor de mais de 500 capas, admirador da boa música e amigo de grandes nomes da MPB, como Paulinho da Viola, Martinho da Vila e Chico Buarque, ele acredita que cuidar da infância é a única saída para a construção de um país mais justo. Elifas passou por muitas dificuldades até chegar onde chegou e deixa a dica: “É só trabalhar, não perder o foco e não perder nunca a esperança. A esperança é uma companheira constante e nós precisamos dela”.

"Se tem um sonho, corra atrás. Dá certo. Pode acreditar"
Foto: Eliene Santana e Rafael Biazão


Agência Hipertexto: Quando você começou a criar as capas de LP’s?

Andreato: Quando fui fazer a direção de arte da coleção Abril Cultural - A História da Música Popular Brasileira. Eu aproveitava as entrevistas para acompanhar o repórter. O trabalho gráfico que eu fazia nos fascículos e também minha aproximação através das entrevistas chamou a atenção dos autores. O primeiro músico que me chamou para fazer capa foi o Paulinho da Viola.

Agência Hipertexto: Houve uma capa feita ao Paulinho da Viola que gerou grande repercussão, como foi? 

Andreato: Em 1973, fiz a capa do LP Nervos de Aço do Paulinho, e aí aconteceu uma coisa fora dos parâmetros para a época. Naquele desenho que criei para a capa, eu denunciava a separação do Paulinho com sua primeira mulher e isso era inconcebível naquele período. A maioria das capas eram simples retratos. Costumo dizer que havia um espaço vago, e que de repente, eu cheguei e ocupei.

Agência Hipertexto: Quais músicos te pediram capa? 

Andreato: Fui chamado sempre pelos artistas de MPB: Maria Bethânia, Chico Buarque, João Bosco, Paulinho e Martinho, e alguns estrangeiros, como Juan Manuel Serrat e Paulo Milarez. Estamos falando de um período em que a música brasileira era uma espécie de voz de oposição ao regime. O Chico era o maior expoente por causa do samba “Apesar de Você”, o Taiguara já estava se exilando, enfim, em 96, eu já tinha mais de 450 capas. Eu também fazia capa para quem estava começando, não era só para estrelas.

Agência Hipertexto: Você acha que houve um momento em que perdemos a arte de capa? 

Andreato: Porque, para chegar ao ponto de não comprarmos o CD e preferirmos fazer download, em algum momento perdemos essa essência da arte. Você acha que foi da passagem do LP para o CD, ou do CD para o download da internet? O mundo mudou, nos últimos 50 anos a transformação foi fantástica. No surgimento do CD, que parecia ser uma revolução, foi reduzido o espaço para nós que fazíamos projetos gráficos, e também perdeu-se um pouco da graça. Eu ainda fiz uma porção de boas capas para CDs, para gente como Zeca Pagodinho, Maria Bethânia e Celso Viáfora. O CD teve um tempo curto de duração como novidade. A tecnologia evoluiu muito rápido. Hoje qualquer pessoa grava o seu disco, grava bem e você baixa no computador. Eu ainda tenho a mania de ficar olhando a capinha, mas a nova geração não faz mais isso.

Agência Hipertexto: Quais artistas influenciaram a sua arte ou serviram como referência? 

Andreato: A minha arte está muito ligada ao renascentismo italiano, porque eu queria fazer uma arte que fosse fácil da pessoa entender. Então, eu não podia cair naquelas formas metafísicas, abstratas, conceituadas, até porque, eu não tive estudo acadêmico, sou autodidata, e as referências que eu tinha, as mais concretas, eram folhinhas, um pouco das imagens de santos. Depois de estudar fui tomando conhecimento de pintores brasileiros que me influenciaram bastante: Di Cavalcante, o próprio Portinari, desenhistas importantes como J. Carlos, que por sinal foi o maior ilustrador da imprensa brasileira. Nas artes gráficas, por exemplo, eu tive uma grande influência de um artista americano chamado Milton Glaser. Quando eu tomei conhecimento dele eu estava iniciando minha carreira de jornalista, mas, o que foi fundamental foi descobrir que o desenhista podia pensar, a ter opinião, ele não precisava ser aquele burro que não faz faculdade e que tem dom para desenhar, que é mais ou menos como funciona o esquema nas redações. “Tem um texto para ilustrar aí!”, vai lá o idiota e faz a ideia do outro e eu me recusei sempre a fazer isso, e tive muito problema. Nenhum artista que eu fiz alguma capa veio me dizer qual era a ideia que eu tinha que fazer.

Agência Hipertexto: O processo de produção das capas hoje foi digitalizado. Você se rendeu ao photoshop ou continua criando da mesma forma? 

Andreato: Só na prancheta, eu tenho seis desenhos prontos para serem scanneados. Tudo prancheta e lápis bem apontado. O computador é só uma ferramenta eficientíssima que me ajuda às vezes a corrigir possíveis defeitos que eu tenha feito na prancheta, mas é só isso, não pensa, não resolve nada, se você não disser o que ele tem que fazer ele não faz.

Agência Hipertexto: Falando de uma forma mais grosseira, você não acha que o computador de certa forma ‘emburrece’ a pessoa. Por exemplo, você pensou: “Vou fazer as pegadas da Clementina no barro, levar pra estufa, deixar secar e tudo mais”. Você não acha que é tudo parte de um processo? 

Andreato: A criação fica muito limitada, por isso que tudo é muito igual, porque é tudo muito óbvio. Por exemplo, aparece um americano, um francês ou um japonês que faz uma coisa legal, e ao mesmo tempo já tem quatro ou cinco outros artistas fazendo a mesma coisa. Foi perdendo-se essa possibilidade de autenticidade de estilo. O desenho também é uma maneira de pensar e de expressar sentimentos e opiniões. E o computador acabou tornando-se um ilustrador disso. Uma coisa que no meu tempo você demorava um dia ou dois, para mudar uma página, hoje você faz em minutos no computador, mas o computador também virou uma ferramenta de auto-engano.

Agência Hipertexto: Dentre as capas que você criou, qual considera a melhor? 

Andreato: Tem uma porção. A capa da Fátima Guedes, “Lápis de Cor” é uma caixa de lápis, usei uma fotografia e tem um caderno com o aspiral. Para o Paulinho da Viola, eu fui aprender a fazer marchetaria para criar a capa, porque ele é bom marceneiro e fiz aquele cavaquinho. Fui em uma fabriqueta aqui na Freguesia do Ó e aprendi a fazer o cavaquinho.

Agência Hipertexto: Quem ia atrás das capas, os assessores ou os próprios artistas? 

Andreato: Eu tratava sempre com os artistas e depois levava a capa pronta. Para você ter uma ideia, quando eu levei “Nervos de Aço” para ODEON (gravadora), foi um ‘pega’. Quem é que em sã consciência ia publicar aquela capa?!

Agência Hipertexto: Algum artista não gostou de uma capa que você criou? 

Andreato: Todos sempre gostaram, quando não gostaram, também, não falaram nada. Mas o Paulinho ficou chocado com a capa de Nervos de Aço, porque era tornar público aquela situação da separação. Tive aquela ideia no avião, voltando do Rio, depois de ter escutado Paulinho já sozinho, no apartamento vazio. Quando ele viu tomou um susto, então fomos até a gravadora ODEON, que desfez: “De jeito nenhum, sai fora cara, não vamos por... Esquece. Vamos por uma foto”. Aí o Paulinho, daquele jeito dele, falou: “Olha gente, eu lamento, mas é a capa do meu disco!”

Agência Hipertexto: O que fazia com que você expusesse os sentimentos nas capas? 

Andreato: O que eu fiz a vida toda foi convidar as pessoas à ouvirem, à lerem, à assistirem, porque eu sempre tive consciência de que a minha obra seria sempre inferior à obra que eu estava ilustrando, agora eu tinha também o compromisso de fazer o convite certo.

"A esperança é uma companheira constante,
e a gente precisa dela"
Foto: Eliene Santana e Rafael Biazão
Agência Hipertexto: Alguma vez aconteceu da equipe de marketing, de algum artista, modificar sua capa? 

Andreato: Não, nunca. Não porque eu também cuidava. Eu levava as minhas capas prontas. Pronta que eu digo é montada, só faltava o disco. Entregava na mão do compositor a capa como se fosse pego na loja e ainda brincava: “Põe o disco aí dentro”.


Agência Hipertexto: O cenário da música, hoje, está totalmente diferente da época dos LPs. Como você enxerga esse cenário atual? 

Andreato: A música brasileira nos dias de hoje tem um aspecto tão amplo que fica difícil. Não posso julgar ninguém, tem música que eu não gosto, não ouço, não compro, se me pede para fazer alguma coisa eu não faço. Mas tem a música regional que é muito rica. E nós, aqui deste gueto chamado centro sul, não conhecemos. De alto nível, você tem, por exemplo, Guinga e compositores como Edu Lobo. Lamentavelmente vocês têm que engolir músicos como a Ana Carolina, Luan Santana, Jorge Vercilo e tantas outras coisas. A gente não pode esquecer que a mídia manipula isso, e de uma maneira muito mais eficiente do que manipulava o sistema político da censura da época da ditadura militar.

Agência Hipertexto: E tem algum artista da nova geração que você considera realmente bom? 

Andreato: Eu gosto muito dessa Maria Gadú, muita gente até não gosta. Ela é muito boa de composição, boa de palco, boa de violão, descolada. O Cazuza sabia tudo, conhecia tudo. Ele fazia o rock dele, ele fazia a poesia dele, mas ele tinha uma cultura, literária, política musical muito sólida. Essa Maria Gadú tem isso, pelas letras dela você percebe, pela forma dela falar, pela forma que ela se preserva.

Agência Hipertexto: Os lugares em que os artistas se apresentam influência sua postura? 

Andreato: Você nota quando a pessoa não presta, quando começa a ir a tudo quanto é lugar e tudo quando é porcaria. Se sujeitar às lágrimas do Faustão. A Marisa Monte, por exemplo, é uma pessoa de dignidade, você nunca viu ela na Luciana Gimenez e nem no Faustão.

Agência Hipertexto: Você tem alguma preferência entre cantores femininos ou masculinos? 

Andreato: Bom, cantoras mulheres tem as pencas por aí de ótima qualidade, muita gente boa, cantores é que não surge, gozado. É uma fase de safra de mulheres.

Agência Hipertexto: Você acha que hoje as pessoas só pensam em vender? 

Andreato: Não! É um mundo pragmático, eu acho que essa questão é de cada um, eu, por exemplo, não sei trabalhar sem expressar meus sentimentos sobre o que eu leio, vejo, ouço, assisto.

Agência Hipertexto: Além das capas de LPs e CDs, você também criou alguma ilustração para livros? 

Andreato: Eu ilustrei muitos livros, inclusive estou ilustrando um agora do Caio Prado, um livro do começo do século passado, interessantíssimo de contos, chama-se “Brás Bexiga e Barra Funda”. O rapaz que organizou o livro fez um belo trabalho de adaptação de linguagem, é um livro escrito há quase cem anos, e trata desses bairros com nítida predominância da colônia italiana. Ele me mandou um CD com vários ilustradores, que ilustraram na época... grandes ilustradores. Cada um no seu tempo. Abri aquilo no computador e achei estranho, porque eu tinha lido o livro e é um livro tenso, dramático e as ilustrações eram todas meio que caricatas.

Agência Hipertexto: Qual dica você deixa para as crianças e adolescentes que tem um sonho, mas convivem com diversas dificuldades?  

Andreato: Não desistir. Tem que correr atrás meu amigo. Se tem um sonho, corra atrás. Dá certo. Pode acreditar. Eu acreditei e tantas outras pessoas acreditaram. É só trabalhar, não perder o foco e não perder nunca a esperança. A esperança é uma companheira constante, e a gente precisa dela. E outra coisa que não podemos perder são as referências que a gente tem na infância. Esse é o período em que se constrói o caráter. A gente cuida da infância em casa, mas também cuida na escola. Como dizia Monteiro Lobato: “A Pátria se constrói com homens de boa índole e livros”.

1 comentários:

rafael disse...

Ótima entrevista, parabéns!

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